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sexta-feira, 23 de março de 2007

VUTI, O MONGO VELHO

“ Foge, feitô, Mongo véio vai vortá”

Lá pelo início do século passado ainda era viva a lembrança do Mongo Velho. Era evocado como o amigo da liberdade, o defensor contra a violência e opressão do colonizador.
Em uma noite, numa roda de jongo, na praça principal da Vila do Jataí, hoje município de Cachoeira Paulista, houve súbito silêncio. Ia ser dado início ao cântigo do “chôro do Mongo Véio”. Os tambores tocaram. Alguns negros no centro da roda puseram-se a gemer, contorcendo-se, curvados como se sustentassem enorme pêso. Outro negro, mais corpulento, manobrava em torno deles, simulando bater com um chicote. Iniciava-se o canto, seguido do “ponto”, cantado em côro:
“ Foge, feitô, Mongo Véio vai vortá!
Taruman, tarumá!
Foge, feitô, Mongo Véio vai vortá!”
E todos dançando cantavam: “Foge, feitô, Mongo véio vai vortá”.
Seguia a cantoria com a entoação de várias estrofes, como:
“Passei córgo, passei rio, subi morro e passei mato,
vi a cruz de Passa Quatro, vi cabôco frechadô;
andei perdido no sertão lá no Embaú,
Fui mordido de urutu... Mongo Véio não vortô.

A figura lendária, no entanto, teve uma existência real. Estavam na verdade celebrando a memória de Vuti, colaborador da fundação do aldeamento de São João Batista de Queluz, no ano de 1800.
Regista a História que os índios Puris habitaram o Vale Médio do Rio Paraíba e a região da Mantiqueira deslocando-se com frequência em direção de Minas Gerais. Nas últimas décadas do oitocentismo, em função da política centralizadora da métropole portuguesa, houve a preocupação de reunir os povos dispersos em aldeamentos para mais facilmente exercer o controle sobre eles. Os Puris, embora pacíficos, não se mostraram dispostos a serem aldeados para assim manter seu modo de vida nômade e livre entre rios e florestas da região.
Para conseguir seu intento as autoridades coloniais conseguiram convencer e ter o apoio de Vuti, que era o mongo, ou seja, o chefe, o cacique mais respeitado da região da Mantiqueira.
Vuti era um Puri experimentado. Líder de seu povo. Entendia e falava alguma coisa de português. Tinha participado de bandeiras como guia. Fez acordo com as autoridades que traria sua gente para a aldeia, evitando assim que fossem perseguidos, caçados, escravizados e até mortos como ocorria na época desde que passassem a ser bem tratados, não caíssem no cativeiro e que tivessem um padre bom para protegê-los. Assim combinados, Vuti trouxe dezenas de famílias para morar no aldeamento. Cada qual deveria receber seu lote de terra, roupas e instrumentos de lavoura. Chegou o Padre Chagas Lima para dirigir o aldeamento,no local onde hoje está a cidade de Queluz.
O próprio Padre Chagas deixou registrado no livro de Tombo da Matriz de Queluz, ao se referir ao aldeamento que:

“veio entre estes um índio ancião que se distinguia entre os demais por sua sagacidade e resolução nas deliberações que se chamava Vuti e os Puris os apelidarão de Mongo.
...Prometeu Vuti e embrenhando-se nas matas, ao dia determinado trouxe os índios que por parcelas vieram chegando com várias mulheres e filhos e que todos juntos completaram o número de oitenta e seis indivíduos. Por adorno rabiscaram o corpo inteiro de vermelho; os ombros e a cabeça emplumada, ao chegar depunham as armas e se rendiam pacificamente.
Mongo foi o único que depois de trazer os outros se retirou sem lhe poder mais alcançar; tornando depois de muito tempo a esta aldea, nada se demorou mais de quinze ou vinte dias, e fugiu.”

A sua fuga foi determinada pelo sentimento de decepção e revolta. Encontrou menos da metade dos índios que tinham sido aldeados. Dentre eles trinta e quatro estavam mortos e sete haviam fugido. As doenças, os maus tratos e a perda de sua identidade minaram sua resistência. Os que ficaram perderam parte de suas tradições e haviam-se desfigurados física e culturalmente. Augusto Zaluar, em sua Peregrinação pela Província de São Paulo, passando por Queluz, sessenta anos depois, registra que “ de todo este aldeamento existe apenas uma mulher sexagenária, talvez a única relíquia desta grande tribo dispersa.”
Pôde ainda presenciar uma caravana vinda do Rio de Janeiro que levava negros escravos. Era dezenas deles, todos com ferro no pescoço, nos pés e no pulso. Alguns reclamavam e apanhavam. Foi quando Mongo Véio se revoltou. E investiu sobre os condutores gritando “tirem ferro cabeça homem negro, deixem negro vortá taoara, mandem embora feitô mau!
Mongo Véio protestou contra a escravatura, a injustiça e a opressão , mas não podia fazer mais nada. Sua reação, como ocorreu com a maioria dos índios no Brasil foi a fuga para o interior. Para procurar viver no isolamento. Preferiu exilar-se na floresta. Não houve súplicas, ameaças, nem promessas que o demovessem desse propósito. Na saída, despejou-se das poucas vestes e embrenhou-se pela floresta, soltando um grande grito de despedida, misto de dor e revolta, que até hoje ecoa pelos recantos da Mantiqueira.
Preferiu então exilar-se na floresta, viver no isolamento. Voltou a ser livre e sua revolta contra a violência contra os negros o transformou em semente de esperança, no amigo da liberdade dos oprimidos!

Fontes:
- REIS, Paulo Pereira dos. O Indígena no Vale do Paraíba. São Paulo, 1979.
- SOUZA, J. B. de Mello. Histórias do Rio Paraíba. São Paulo: Saraiva, 1951.
- ZALUAR, A. E. . Peregrinações pela Província de São Paulo. (1860-1861). São Paulo, 1954.

terça-feira, 13 de março de 2007

Net Vale, muitas histórias !

Sou um valeparaibano.
Nasci e cresci, como diria Monteiro Lobato, em uma grande família, com presunção de cidade. Andei pelos caminhos de várias maneiras: a pé, a cavalo, em charretes, ônibus e automóveis.
Como queria entender melhor as histórias contadas em redor do fogão de lenha na casa de meus avós e na roda de amigos logo me interessei pelas pesquisas. Assim fui debruçando sobre os livros, visitando arquivos, navegando pela internet. Como o caminhar se faz na caminhada, com os amigos e interessados no mesmo assunto, criamos o Instituto de Estudos Valeparaibanos e arrumamos motivo para nos juntarmos com frequência, promovendo a defesa do patrimônio ambiental e cultural da região. Recentemente criei e cuido com carinho do Portal www.valedoparaiba.com voltado para divulgar a terra e o povo da região.
Região aqui entendida pelo território ligados pelo mesmo passado e raízes históricas que se estende por todo o Vale do Paraíba, o litoral norte de São Paulo, o litoral sul fluminense e o sul de Minas Gerais. Rica em memórias e tradições.
São muitas histórias que trago no baú da minha memória, fruto das conversas, dos causos e dos registros. Chegou a hora de contá-las. Como a modernidade trouxe um frenesi pelo tempo e o processo de globalização fez diminuir o espaço público, pretendo usar esta ferramenta para transmití-las. Mais do que isto, dispor do mesmo para que você leitor possa também reviver e contar as história do Vale, àquelas lembranças que julgar dignas de serem perpetuadas.
Vamos nessa!

Saúde e paz para todos.

F. Sodero